A MÃE SUFICIENTEMENTE BOA EM TEMPOS DE PANDEMÔNIO: MANIFESTO DO IMPERFEITO.
Categorias
Tags
Eu planejei assim: eu ia engravidar, ganhar pouquíssimo peso, parir de parto natural e depois voltar a trabalhar poderosa, esplêndida, cheia de vitalidade e uma pele ótima. Meu bebê ia ficar em casa com a avó durante a introdução alimentar super saudável e eu iria continuar a amamentação em livre demanda até os seus 2 anos. A gente ia passear pela rua com ela no sling ou qualquer carregador bem moderno e pomposo e a gente iria juntas todo dia fazer uma caminhada para aqueles kgs ganhos irem embora. Eu iria escrever, trabalhar, terminar a tese em filosofia e a dissertação em direito e quem sabe iniciar a retomada da profissão docente com toda força, enquanto seria a boa mãe que pensei ser possível ser (sim, nunca planejei ser perfeita. Sabia que seria impossível). Bom, fiz uma fertilização que foi sucesso na primeira (oba! plano tomando forma), aí engravidei numa vibe mega zen. Fiquei completamente envolvida pela gravidez, fazendo yoga até as 38 semanas de gestação e de fato engordei consideravelmente pouco. Eu "tava" me achando uma deusa da barriga grávida e pari (gosto de falar parir, prefiro à dar a luz, acho parto tão animalesco que esse termo veste bem ao ritual) às 38 semanas num parto diferente do que planejei, sem flores e banheira, mas o melhor momento da minha vida, sem dúvida nenhuma. Fiquei inebriada pela ocitocina daquele parto por algumas semanas. Até aqui plano imperfeitamente perfeito dentro da margem de caos esperado, com problemas na amamentação e aquele puerpério básico com cara de 60 dias de neblina.
Faltando 1 mês pra voltar da licença maternidade, ainda com aquelas gordurinhas na barriga que imensou pra receber o bebê planejado mas sem me incomodar com a "pressão estética", eu perfeitamente adaptada à imperfeição estava ansiosa que só mas super animada para os novos planos. Aí encasquetei que queria morar perto do trabalho pra continuar a amamentação. Alugamos um apê ao lado do trabalho. A terceira guerra mundial quase começou do conflito entre eu e meu marido sobre essa tal mudança, mas o convenci com muito choro de mãe de bebê amamentando depois de ter vencido aquele início sem leite e conquistado uma amamentação mista de sucesso. Eu ia voltar a trabalhar em março, e a mudança veio logo na primeira semana. Retomei ao trabalho feliz de ir e vir quando quisesse pra ver meu bebê... o apartamento na bagunça da mudança, mas tomando forma de um futuro. O plano ainda parecia imperfeitamente perfeito.
Eis que uma semana depois da mudança e da retomada ao trabalho, sobreveio a notícia de que o coronavírus havia chegado finalmente ao Brasil: caos e pânico sobre a terra tupiniquim*.
...corre, fecha tudo e lá vai a gente se isolar num apartamento (sem nunca ter morado num) com um bebê de 6 meses. Coisa mais doida da vida. O privilégio do teletrabalho meu e do marido fez as primeiras semanas parecem "férias com o bebê no apê". Tava bom demais ué.
Mas o tempo foi passando, passando e já se vão 8 meses. Com mais conhecimento sobre a doença e as formas de contágio ja flexibilizamos algumas coisas... caminhada ao ar livre, ida ao mercado, contato com prestadores de serviço: sempre de máscara. E não, nunca as de crochê a La Fabi Justus (da um google 😂😣).
Mas o ponto que eu queria chegar se fosse pra detalhar, não caberia num texto. 8 meses né gente, daria um livro inteiro de crônicas cheias de rotina de lavar produtos de entrega, álcool gel e, no caso do apê, falta de sol e de uma sacada, sem falar a "revoada de mosquitos" naquela caverna escura. (aqui já começo a denunciar que teve trauma daquele lugar). Mas enfim, queria mesmo falar da maternidade nesse pandemônio.
Lembra do plano imperfeitamente perfeito? Não foi nada como planejei. A real é que na ânsia de retomar à uma mulheridade, abracei o trabalho remoto, crente que iria aproveitar pra me doar ao máximo sem ter de sair de perto da cria. Mas o tempo foi passando e com as flexibilizações de todos ao nosso redor, a pandemia foi se tornando uma areia movediça de solidão, os tais mosquitos, pouca luz solar e alguma energia dedicada à amamentação em livre demanda entre alguns textos, o trabalho, e qualquer coisa parecida com uma semi-vida. Mas fui derretendo! Sabe assim??? Não sei explicar com outra palavra... eu meio que parei de existir. Cansada de tanto dialogar; exausta de ver os outros achando que não pega se não abraçar 😑, confundindo vírus respiratório com aids, eu suponho. Numa compreensão errada desse outro vírus também. Mas a questão é que fui parando de existir naquele cansaço que fazia realmente as vezes nem querer resistir. A mulheridade ficou subsumida pela maternidade que foi a única coisa que realmente não negligenciei. Bom, isso se a gente não levar em consideração o emocional da mãe, ali sozinha, fechada... cheia de medo do bebê morrer e confusa entre o medo de morrer e não ter quem cuidasse do bebê e querer às vezes desaparecer.
Nem os planos mais imperfeitos continham esse cenário na minha mente que, confesso, sempre foi criativa para tragédias. Mas nunca pensei que seria assim, que o primeiro ano de vida de minha filha seria trancado num apê, ou que minha maternidade de primeira viagem seria a solidão de paredes brancas e discursos de que nossa postura era enfadonha e exagerada. As frustrações não foram apenas com a pandemia e todos os passeios que não fizemos. Eu acho que o pior mesmo foi essa solidão sobre a forma como decidimos lidar com o isolamento contra todos aqueles que nos cercavam.
Isso porque nunca achamos que seria uma gripezinha e também porque temíamos (e ainda tememos) por nossa saúde. Eu sabia lá no início que as questões ideológicas pesariam nas decisões, mas nunca achei que viveríamos esse emaranhado de posturas que não podem coexistir: ou você se cuida ou não. Com a pandemia não dá pra fazer concessões.
Claro que “tô” falando dentro do meu privilégio de poder trabalhar de casa, embora agora eu esteja afastada justamente por razões de saúde mental: a pandemia foi pra mim, um pandemônio.
Toda semana o conflito exaustivo de ter de dialogar sobre os cuidados com aqueles que eu quisesse encontrar. Até não querer mais. Até não poder mais. E a maternidade que eu planejei ficou pra trás.
A real e que engordei na pandemia, produzi bem menos do que queria, chorei muito, ri pouco. Fiquei sozinha com meu bebê e marido e sobreveio que nisso tudo fiquei deprimida.
Ai veio terapia (on line, é claro) mudança do apê pra uma casa (agora própria. Alô financiamento!!! Adiós mosquitos ) e cicatrizes de inúmeros conflitos pessoais que nem quero nominar.
E eis que insurge uma necessária reflexão e uma significância capaz de dignificar essa caótica aparição...
A Teoria da MÃE SUFICIENTEMENTE BOA do pediatra e psicanalista Donald Woods Winicott.
Winnicott menciona que:
A ‘mãe’ suficientemente boa é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração.. (WINNICOTT, 1975, p. 25). (grifo nosso)
Quando o psicanalista desenvolveu sua teoria, longe aqui de debater se é ou não misoginia, coloca a mulher mãe num lugar de absoluta devoção, num estabelecimento domiciliar em que ela "governa a casa" enquanto o "homem tem sua maneira própria no tocante ao trabalho. [...]" (pag. 135-136). É inquestionável que houve uma grande mudança na constituição familiar desde então, com a inclusão drástica das mulheres no mercado de trabalho (ainda de forma desigual). O fato é que essa mãe Winicottiana, talvez não seja a mesma da contemporaneidade. Mas nada se compara à viver uma pandemia na maternidade (no sentido do estress, talvez uma guerra. Carecendo aqui de leitura que reportarei depois). Aqui a mãe suficientemente boa é também talvez a luta travada para sermos nós mesmas suficientemente boas conosco.
Uma luta sem fim. A tríade mulher x mãe x profissional, com nossas angústias e dissabores, em meio ao caos.
Me vejo sem saber direito onde colocar o celular pra uma desnecesselfie...rs. Sem saber ao certo que horas parar pra escrever ou atuar como soberana de mim. Me enxergo como que numa agua turva, caminhando por em direção a algum lugar que eu não sei ao certo onde vai dar.
Parece que só existo quando ela dorme. E no meio do pandemônio é a hora que consigo anotar na agenda os compromissos que não quero falhar comigo mesma: terapia, uma caminhada, talvez ler um livro, ficar com o marido quem sabe.
Ai entendi: “mãe suficientemente boa no pandemônio”. Nada (ou quase nada) que planejei se tornou real. A pandemia e todos os seus conflitos trouxe à tona ser suficientemente boa, nada mais que isso. Me pego, agora colecionando interpretações sobre o que seria ser essa. Atravessando as frustrações de um pandemônio pra ser apenas o que dá, como dá.
Entendi que os planos servem de orientação bussolar, mas assim como os aviões precisam mudar a rota pra não se chocar com tempestades, essa mãe aqui, nesse pandemônio foi obrigada a mudar a direção e nada pôde ser perfeito, só suficientemente bom! E está tudo bem! Meu manifesto para que abracemos o caos. Manifesto de uma mãe suficientemente boa no pandemônio. Um manifesto do imperfeito. Sintam meu abraço da imperfeição no caos. Se falta empatia, sejamos nós as empatas. E eu aqui, na minha imperfeição, entendo seu medo, acolho seus planos imperfeitos, te abraço de longe e te chamo para sermos SUFICIENTEMENTE BOAS, CONOSCO E NOSSOS BEBÊS, sem planos perfeitos, só suficientemente bons.
Alianna Cardoso Vançan
A mãe suficientemente boa da Helena.
REFERÊNCIAS
BUENO, E. A viagem do descobrimento: um outro olhar sobre a expedição de Cabral. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 114p.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. 6 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago editora LTDA, 1975.
WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Posts relacionados
Série: Olhos que condenam | Qualquer lugar
Criada, dirigida e escrita por Ava DuVernay, a série se baseia em fatos reais de um caso que ficou conhecido nos Estados Unidos da América, por ser um...
Estoque de rolhas em casa
Hoje vim falar sobre as rolhas! Muitas pessoas colecionam, outras jogam fora e outras são artísticas e dão funcionalidade além do vinho para elas. En...
Comida é afeto - Receita da vó
Tem comidas que nos fazem recordar de pessoas que amamos, comidas que nos fazem lembrar alguém ou algum momento que vivenciamos.
Estupro e a morte do prazer
Nos últimos dias a internet se revoltou com o caso Mariana Ferrer. As revoltas escalonaram quando "The intercept Brasil" obteve acesso a trechos da au...
Relações heterossexuais monogâmicas, infidelidade e como lidar com a descoberta de uma traição.
A monogamia é uma construção social moldada pelas pessoas ao longo dos tempos em uma sociedade que valoriza muito a fidelidade (da mulher).