Evoé!
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No poema Identidade, Mia Couto diz: “Preciso ser um outro / para ser eu mesmo / (...) / Existo onde me desconheço / (...) / No mundo que combato morro / no mundo por que luto nasço.” Quando comecei a fazer teatro -isso foi na escola, no início da minha adolescência-, como diz o poema, eu buscava encontrar quem eu era, encontrar um propósito. Ser outra pessoa, mesmo que na ficção, seria uma forma de tentar conhecer-me, ou a quem eu queria ou poderia ser. O teatro era o espaço da experiência do outro, do estar na pele do outro. Como seria pensar diferente, falar diferente, sentir diferente? A arte do ator é a própria prática da empatia. O desconhecido do humano se amplia e se transforma em possibilidades. Eu me descobria ao identificar os reflexos, os duplos de mim mesma. Em cada nova peça buscava desnudar o humano, as suas angústias, as suas dores, os seus comportamentos sociais. Afinal, não somos todos feitos do mesmo barro? Ou do mesmo pó de estrelas? Assim, colocar em cena situações, circunstâncias e suas consequências, foi me construindo enquanto pessoa, enquanto ser social e político.
O teatro, como linguagem artística, é a forma sofisticada de revelar, descrever, simbolizar a existência e a complexidade (ou não) da sociedade humana, seja ela tratada em micro -cenas intimas- ou em grandes proporções -problemáticas sociais e questões filosóficas. O teatro, como manifestação cultural, também se revela de forma generosa, pois qualquer pessoa é capaz de fazer teatro. Basta alguém que tenha algo para dizer (autor/ator) e alguém que queira assistir (espectador). Evoé!* Eis o teatro! E aí se vão desvendando condutas humanas. E isso nos enriquece a todos: autor, atores, espectadores. Sim, nos enriquece, pois o teatro não só permite fruir esteticamente a obra, mas também nos faz mais ricos: com mais conteúdo para atuar e pensar em nossas vidas.
Assim, o teatro me sequestrou para o mundo da ficção, do sonho, da utopia, e também da crítica, da reflexão, da política. Segui para a vida adulta buscando respostas para perguntas que me inquietavam. Cursei filosofia, pós-graduação em teatro, psicologia, psicodrama, mais teatro. Dissertei sobre Dramaturgia, no mestrado em Teatro. E no mestrado em Turismo, experimentei as possibilidades do turismo cultural. Trabalhei como atriz e professora de teatro. Participei de grupos de teatro, fui coordenadora e diretora na Secretaria Municipal da Cultura. Hoje, sigo fazendo teatro, atuando como produtora cultural na minha própria empresa e participando, sempre que possível, como ativista na defesa de pautas culturais. Faço isso porque acredito na Cultura como importante vetor de civilidade e de desenvolvimento individual e social. Hoje, mais do que nunca, a cultura, e a arte em especial, se mostram necessárias para o enfrentamento de posturas retrógradas e obscurantistas, vistas todos os dias em cenas deprimentes, tanto no âmbito público, quanto no privado.
Por isso, quando me perguntam como é trabalhar com arte e cultura, respondo que é como perder a batalha todos os dias, como no mito de Prometeu, mas também é renascer sempre para o novo, buscando o alento da utopia e o ânimo da crença que um mundo melhor é possível.
*Evoé! era o grito de evocação proferido pelas sacerdotisas que cultuavam Baco (Dioniso, para os gregos), deus do vinho, das festas e do Teatro. [Por extensão] Grito de felicidade, de alegria.
Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Magali Quadros
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